Durante uma entrevista com Ben Thompson, do Stratechery, Mark Zuckerberg descreveu uma visão de futuro que pode representar a ruptura mais radical já vista no setor de publicidade. Não apenas uma reestruturação de canais, formatos ou criativos, mas uma mudança completa de quem detém o controle sobre o processo publicitário — das agências para as plataformas. “Você é um negócio, você vem até nós, você nos diz qual é o seu objetivo, você se conecta à sua conta bancária, você não precisa de nenhum criativo, você não precisa de nenhuma segmentação demográfica, você não precisa de nenhuma medição, exceto para poder ler os resultados que a gente cospe.” A fala resume a proposta de Zuckerberg: uma automação completa da publicidade, onde o anunciante apenas informa seu objetivo, e a Meta cuida de absolutamente todo o restante.
O plano da Meta: uma cadeia publicitária 100% automatizada
Zuckerberg reconhece que hoje ainda há uma etapa “difícil” no processo publicitário: a criação. Mesmo com algoritmos avançados de segmentação e mensuração, a produção de fotos, vídeos e textos para campanhas continua dependendo de humanos — designers, redatores, estrategistas, diretores de criação. A Meta quer romper com isso.
O plano é que o anunciante chegue com uma ideia geral de seu produto ou serviço e que a própria plataforma seja capaz de gerar conteúdos infinitos — imagens, vídeos, variações de texto —, testar todos esses criativos em diferentes públicos e contextos, medir os resultados e fazer iterações constantes, tudo impulsionado por IA. O conceito, informalmente apelidado de “criativo infinito”, elimina a necessidade de fornecedores externos, agências de mídia, agências criativas, profissionais de estratégia, e até mesmo analistas de performance. A promessa é de eficiência total: mais resultados com menos envolvimento humano.

Automação total: eficiência ou apagamento do discernimento?
O discurso da Meta é sedutor, principalmente para pequenas e médias empresas. O uso de IA para escalar produção criativa e automatizar testes parece finalmente democratizar o acesso à publicidade digital de alta performance. Empresas que não têm orçamento para contratar agências ou construir times internos podem, em tese, lançar campanhas otimizadas com o clique de um botão.
Mas é justamente nesse modelo que surgem os primeiros pontos críticos. A ideia de que a plataforma “cospe resultados” e o cliente “apenas lê” pressupõe um nível de confiança absoluto nos dados que a própria Meta fornece — dados que interessam diretamente à própria Meta. Quem fiscaliza a atribuição correta de conversões? Quem verifica se impressões e cliques são legítimos? Quem garante que os custos por aquisição não estão sendo artificialmente inflacionados por mecanismos de otimização que priorizam lucro da plataforma?
Ao eliminar a agência, elimina-se também o papel do intermediário que tradicionalmente servia como fiscal do processo. Por mais que a relação cliente-agência nem sempre seja perfeita, ela cria um sistema de dupla checagem — onde a plataforma precisa provar resultados e a agência precisa justificar investimentos. Quando a plataforma se torna vendedora, produtora, executora e auditora de todo o ecossistema, entra-se em um modelo fechado, onde o anunciante perde qualquer referência externa.
O fim do juízo criativo e da comunicação com identidade
Para além da métrica e da eficiência, existe outro risco menos tangível, mas igualmente preocupante: o da perda da criatividade com propósito. Agências não são apenas produtoras de arte e texto — são guardiãs da identidade da marca. São elas que, historicamente, ajudam as empresas a traduzirem sua missão em mensagens que ressoem com públicos reais, em contextos culturais variados e em momentos sociais específicos.
Zuckerberg fala com entusiasmo sobre a possibilidade de “produzir um número infinito” de criativos. De fato, gerar variações automáticas de um mesmo anúncio pode ser útil para testes de performance. Mas há uma grande diferença entre testar dez versões de uma chamada para ação e construir uma campanha com storytelling, emoção, ironia, crítica social ou qualquer nuance humana que não se replica com prompts genéricos. Criatividade não é apenas repetição com variações. É interpretação, é ousadia, é linguagem simbólica — e tudo isso é perdido quando o centro da criação está nas mãos de um algoritmo que responde a estímulos numéricos, e não a valores.
Privacidade, dados e riscos estruturais
Outro ponto subestimado nessa proposta de automação total é a sugestão de “conectar a conta bancária” do anunciante diretamente à Meta, como parte do fluxo automático. Isso pressupõe uma entrega de confiança total, não apenas em relação à medição de resultados, mas também ao controle financeiro.
Mesmo em um mundo onde as APIs financeiras estão cada vez mais integradas com sistemas de pagamento e automação, a concentração de dados sensíveis (financeiros, comportamentais e criativos) em uma única entidade privada como a Meta é um risco estrutural. E, historicamente, o setor de publicidade digital já conviveu com diversos escândalos de privacidade, desde uso indevido de dados pessoais até manipulações de métricas.
Ao remover todos os intermediários humanos e entregar à Meta o controle do dinheiro, do conteúdo, da veiculação e da métrica, o anunciante se posiciona em uma relação de dependência extrema. Essa centralização fere o princípio básico da concorrência saudável e da responsabilidade compartilhada.
Um futuro sem agências — ou um futuro com novos papéis?
Zuckerberg não está errado ao apontar que as agências, como conhecemos, serão desafiadas. O modelo atual, muitas vezes burocrático, caro e lento, já sofre pressão por transformação. A IA traz ferramentas que reduzem tarefas repetitivas e aumentam a produtividade criativa — e isso é ótimo. Mas isso não justifica o apagamento total das agências.
O que se desenha é uma necessidade urgente de reconfiguração. Agências precisarão se posicionar como curadoras de conteúdo gerado por IA, como guardiãs da integridade de marca e como auditores independentes dos sistemas das plataformas. Sua função poderá ser menos operacional e mais estratégica, mais voltada para governança, ética e inteligência de marca — algo que nenhuma plataforma, por mais poderosa, pode replicar automaticamente.
Conclusão: inovação sem responsabilidade é risco
A Meta quer redesenhar a cadeia publicitária para que ela se encaixe perfeitamente dentro de seus sistemas — criativo, veiculação, métrica e resultado. Esse futuro pode ser eficiente, barato e massivo. Mas também pode ser opaco, manipulável e desumanizado.
A pergunta que fica não é se a IA deve estar presente na publicidade — isso é inevitável. A pergunta é: devemos entregar a uma única empresa todos os dados, decisões criativas, critérios de sucesso e recursos financeiros sem qualquer mediação?
A resposta mais prudente não está em resistir à tecnologia, mas em construir sistemas híbridos, onde plataformas automatizam o que podem, mas onde agências, criativos e estrategistas continuam a garantir que a publicidade não perca sua alma. Porque no fim, comunicar bem ainda é — e sempre será — um ato profundamente humano.