Em um cenário digital em constante ebulição, a única certeza é que o futuro dos portais de conteúdo e do jornalismo não terá espaço para clickbait e conteúdo sem valor agregado.
A sobrevivência e a relevância estarão atreladas à capacidade de inovar, entregar profundidade e construir um relacionamento genuíno com a audiência. Mas, afinal, como os grandes nomes do jornalismo moderno têm se adaptado a essa realidade?
O caso do Washington Post nos oferece insights valiosos.
O Washington Post e a necessidade de reestruturação
O Washington Post, uma das mais respeitadas publicações globais, está no centro de uma profunda “transformação da redação”.
Recentemente, a empresa ofereceu um programa de desligamento voluntário (VSP) a funcionários com mais de 10 anos de casa, uma medida que visa reestruturar equipes e alinhar a operação às novas demandas do mercado.
Departamentos como vídeo e edição estão sendo reorganizados, com um foco crescente em “formatos mais direcionados a personalidades para o YouTube” e a consolidação de equipes de edição em um “hub de notícias central” para otimizar “velocidade e qualidade” de seus produtos digitais.
Essa movimentação, embora descrita como uma oportunidade para os funcionários, reflete os desafios financeiros enfrentados pela publicação, que, segundo relatos, perdeu US$ 100 milhões em 2024 e viu jornalistas renomados migrarem para concorrentes como The New York Times e The Atlantic.
A aquisição por Jeff Bezos em 2013, embora tenha injetado capital e inovação, não isentou o Post da necessidade de reimaginar seu modelo de negócio diante da “velocidade da mudança tecnológica, o cenário em evolução da indústria e a necessidade sempre presente de produzir e promover um jornalismo forte, rigoroso e independente”.
Isso nos coloca em um dilema de difícil resolução: acelerar em testes que ajudem a manter negócios, reputações e relevância em crescimento, enquanto se pratica jornalismo.
É fácil, por exemplo, escolher a monetização a qualquer custo. No Brasil, temos vários exemplos de quem esqueceu a qualidade editorial. Por outro lado, é simplista defender uma bandeira de jornalismo com equipes de qualidade, mas que não são vistas nem se monetiza ao longo do tempo.
Por isso, os tempos se tornam tão difíceis. Não é possível escolher apenas um dos caminhos. Ambos são necessários.
Como disse Flávio Moreira:
Frio. Impiedoso. Talvez necessário. (…)
O Post quer crescer em audiência, redes sociais, dados e vídeo. E isso exige flexibilidade, reinvenção e uma nova mentalidade.
No centro dessa transformação está uma mudança de paradigma: sair da produção massiva e genérica para conteúdos mais autorais, recorrentes e centrados em personalidades. Vídeos não são mais apenas suporte. Agora são produto.

O impacto do Google e a ascensão da IA na distribuição de conteúdo
As mudanças no Washington Post não são um caso isolado, mas um sintoma de um desafio global, intensificado pelas estratégias das grandes plataformas de tecnologia, como o Google. Recentemente, o Google tem experimentado com a forma como o conteúdo é apresentado, como a troca de títulos por trechos de textos no Discover. A empresa alega que isso promove um “ecossistema saudável” e mantém as pessoas por mais tempo nos artigos, desencorajando o clickbait.
Contudo, a realidade tem sido mais complexa, especialmente com as “Google AI Overviews” (Resumos de IA do Google). Essas respostas geradas por inteligência artificial diretamente nos resultados de busca têm causado uma “redução impactante nas taxas de cliques (CTR)” para grandes editores, mesmo para aqueles na primeira posição orgânica. O Mail Online, por exemplo, registrou quedas de CTR de 13% para menos de 5% no desktop e de 20% para 7% no celular quando uma AI Overview estava presente.
Apesar de o Google afirmar que os links incluídos nas AI Overviews recebem mais cliques, dados de terceiros indicam um “aumento maciço” nas buscas “zero-click”, onde o usuário encontra a resposta diretamente no resultado da busca e não clica em nenhum link.
A iminente chegada do “AI Mode”, uma versão mais conversacional e similar ao ChatGPT, aprofunda essa preocupação, prometendo responder a “perguntas mais complexas que antes exigiriam várias buscas” e potencialmente fornecendo informações tão completas que a necessidade de cliques nos links é eliminada. Isso ameaça “engolir o tráfego por atacado” e exige que os editores encontrem “um modelo de negócio diferente que lhes permita monetizar esse conteúdo”.
Por isso, as empresas precisam ser mais dinâmicas, procurando sua própria natureza, abandonando, talvez, aquilo que não as permitirá seguir firmes no futuro.
A reestruturação do Business Insider e a dependência algorítmica
Outro exemplo claro dessa transformação é o Business Insider, que demitiu 21% de seu quadro de funcionários em uma reestruturação estratégica que inclui um “foco renovado em seu público principal e uma integração agressiva da Inteligência Artificial (IA) em suas operações”.
A CEO Barbara Peng admitiu que 70% do negócio possui “algum grau de sensibilidade ao tráfego” e que a empresa precisa ser capaz de “suportar quedas extremas de tráfego fora de nosso controle”. Essa vulnerabilidade crônica à dependência de plataformas como o Google é um alerta.
Apesar da promessa de que a IA ajudará a “trabalhar mais rápido, de forma mais inteligente e melhor”, as demissões em massa levantam a questão da linha tênue entre otimização e substituição da mão de obra humana.
O sindicato dos funcionários criticou a menção à IA como “insensível” e um reflexo do “pivô descarado da [empresa controladora] Axel Springer para longe do jornalismo e em direção à ganância”.
É interessante notar que, enquanto o Business Insider busca reduzir a dependência algorítmica e focar em suas forças, a realidade no Brasil é, por vezes, oposta. Muitos portais nacionais têm optado por terceirizar diretórios sem controle editorial, aumentando ainda mais a dependência de algoritmos e comprometendo o valor jornalístico e o branding da marca.
Por mais que possamos criticar a decisão da CEO, precisamos concordar que a ousadia é válida e importante. Em cenários tão desafiadores, permanecer com as mesmas estratégias focadas nas oscilações de pesquisa é tão arriscado quanto mudar.
O cenário brasileiro: casos de Inteligência Financeira e Jovem Nerd
A crise no jornalismo digital não se limita às grandes publicações internacionais. No Brasil, o fechamento de projetos como Inteligência Financeira (IF), do Itaú, e NerdBunker (Jovem Nerd), da Magalu, acende um alerta significativo.
O Inteligência Financeira, apesar de um projeto com bons conteúdos, “nunca decolou, de fato” em termos de audiência, chegando a ter menos tráfego do que domínios especializados em clickbait e fake news. O Jovem Nerd, por sua vez, apresentava certa estabilidade, mas mesmo pequenas quedas em um cenário de custos crescentes podem comprometer a continuidade de projetos.
Esses casos reforçam a ideia de que “conteúdo é democracia e cultura”, não uma mera commodity. Ele é a base para a reflexão, o senso crítico e a tomada de decisões informadas. Desincentivar a produção de conteúdo de qualidade é minar a vitalidade cultural e os alicerces da própria democracia.
A situação é tão desafiadora que, conforme sugerido por um engenheiro do Google, os portais de notícia no futuro poderão se tornar organizações sem fins lucrativos.
O fio condutor: desafios comuns e a urgência da mudança
Ao analisar os casos do Washington Post, Business Insider e as recentes dificuldades de Inteligência Financeira e Jovem Nerd no Brasil, percebemos um fio condutor de desafios que transcendem as particularidades de cada publicação ou mercado. Todos esses projetos, em maior ou menor grau, estão lidando com as seguintes problemáticas:
- Pressão financeira e cortes: A dificuldade em manter a rentabilidade no ambiente digital é onipresente. Perdas financeiras, a necessidade de cortar custos e a reestruturação de equipes tornaram-se uma realidade dura para muitos, levando a programas de desligamento voluntário ou demissões em massa.
- Impacto avassalador da inteligência artificial: As inovações no campo da IA, especialmente as “AI Overviews” e o “AI Mode” do Google, estão fundamentalmente alterando a forma como os usuários consomem informação. A queda acentuada nas taxas de cliques e o aumento das buscas “zero-click” mostram que o tráfego direto para os portais está sendo erodido, exigindo que os editores repensem sua proposta de valor.
- Vulnerabilidade à dependência algorítmica: Anos de otimização para algoritmos de busca e redes sociais criaram uma dependência perigosa. Mudanças nas políticas ou no funcionamento dessas plataformas podem devastar o tráfego da noite para o dia, expondo a fragilidade de modelos de negócio que não priorizam o relacionamento direto com o leitor.
- Crise do modelo de negócios tradicional: A publicidade digital, embora ainda relevante, não é mais suficiente para sustentar operações jornalísticas robustas. A necessidade de diversificar as fontes de receita torna-se imperativa, buscando modelos de assinatura, eventos, licenciamento e outras formas de monetização que não dependam exclusivamente do volume de tráfego.
- Ameaça ao jornalismo de qualidade: Em um cenário de escassez de recursos e competição algorítmica, o jornalismo investigativo, aprofundado e de alto valor agregado, que é caro de produzir, enfrenta dificuldades para encontrar sua sustentabilidade. A tendência de priorizar conteúdo rápido e otimizado para cliques, mesmo que de baixa qualidade, agrava esse quadro.
- A importância urgente da marca e relacionamento: Aqueles que estão conseguindo resistir demonstram a importância de uma marca forte e de uma base de leitores leais. As “buscas de marca” e o conteúdo “inreplicável por IA” (como análises aprofundadas e colunistas) são os mais resilientes, reforçando a necessidade de construir comunidades engajadas e um vínculo direto com a audiência.
Esses pontos em comum destacam que a crise no jornalismo digital não é isolada, mas sistêmica. A resposta a ela exige uma mudança profunda e estratégica, que vá além de ajustes pontuais e foque na construção de um futuro mais sustentável para a informação de qualidade.
Reimaginando o futuro: estratégias essenciais para editores
Diante desse cenário desafiador, com o tráfego de busca tendendo a diminuir, os editores precisam repensar fundamentalmente suas estratégias. Algumas abordagens são cruciais:
- Construção de relacionamentos diretos e comunidades engajadas: O foco deve se deslocar da perseguição volátil por tráfego de referência para a construção de uma base de leitores leais. Isso implica investir em newsletters de qualidade, programas de membros, fóruns de discussão e outras iniciativas que fomentem um senso de pertencimento.
- Especialização e proposta de valor única: Em um mar de informações genéricas, a diferenciação é chave. Veículos que se aprofundam em nichos específicos, oferecendo expertise, análises originais e perspectivas únicas, têm maior chance de atrair e reter um público disposto a pagar. O conteúdo inreplicável por IA, como colunistas e blogs ao vivo, é uma vantagem competitiva.
- Diversificação inteligente de receitas: A dependência excessiva da publicidade é arriscada. Modelos de assinatura, conteúdo premium, eventos, licenciamento de conteúdo e até filantropia precisam ser explorados e combinados de forma criativa.
- Uso ético e estratégico da IA: A Inteligência Artificial pode ser uma aliada poderosa, auxiliando na análise de dados, personalização da experiência do usuário e otimização de fluxos de trabalho. No entanto, seu papel deve ser o de aumentar a capacidade dos jornalistas, e não o de substituí-los nas tarefas essenciais de apuração, checagem e construção de narrativas.
Agir agora para um jornalismo sustentável
As demissões no Business Insider, as reestruturações no Washington Post e o fechamento de portais no Brasil são sintomas de uma indústria em profunda transformação. A “aposta total na IA” e as “reestruturações” são tentativas de adaptação, mas também um reflexo das pressões financeiras e da dificuldade em escapar da armadilha da dependência das grandes plataformas tecnológicas.
Para que o jornalismo digital não apenas sobreviva, mas prospere, é imperativo que os líderes de mídia, jornalistas e o público repensem o valor da informação de qualidade. O caminho à frente exige coragem para inovar, compromisso com a excelência jornalística e, acima de tudo, um foco inabalável em servir e construir um relacionamento de confiança com o leitor. É hora de defender, de fato, o conteúdo de qualidade.
Este conteúdo não deve ser encarado como uma proposta de mudança. Ao contrário, um princípio de discussão. Nós também estamos longe de termos respostas definitivas. Nem queremos tê-las. Apenas sabemos o que não funciona. Vamos, então, a outra direção.
Publisher do "Não é Agência!" e Especialista de SEO, Willian Porto tem mais de 21 anos de experiência em projetos de aquisição orgânica. Especializado em Portais de Noticia, também participou de projetos em e-commerces, como Americanas, Shoptime, Bosch e Trocafone.