Uma narrativa que eu vejo ganhando força quanto ao papel da escrita em tempos de IA é o seu papel em organizar o pensamento.
Existem muitas formas de organizar o pensamento. Mapas mentais, diagramas, planilhas, textos, dados estruturados… as formas são tão variadas como a riqueza que a mente humana usa para pensar. O próprio tema da representação do pensamento é de interesse das psicologias, filosofias, artes, e bem, de todo mundo curioso em entender o cérebro sem “quebrar a cabeça”.
E tanto quanto as variedades de formas de representar o pensamento são as metadiscussões a respeito disso. Todo mundo que já leu crônica, já leu alguma sobre a dificuldade de escrever. Vencer a página em branco. Pode parecer a carta na manga de um cronista do Itaim Bibi ou do Leblon, sem problemas reais para escrever sobre, mas é, isso sim, um dos ápices do fazer-escrita.
Falei do “medo da folha em branco”, certo? E, se você já passou algum tempo no LinkedIn, já viu alguém comentando como as IAs ajudam a sair do zero, transformando seu usuário em “editor de IA”.
(Existem os dois, editores de IA, e IAs como editoras. Ambas te dão volume e agilidade. Ambas te salvam esforço cognitivo. Ambas te deixam mais burro.)
Porém eu nunca vi isso tão bem descrito quanto essa passagem do livro de “Escrever é humano, como dar vida à sua escrita em tempo de robôs”, do Sérgio Rodrigues.
“Escrever é um processo de entender o pensamento, não transcrevê-lo”.
Acho que isso ajuda a entender o papel do redator em tempos de IA, ou pelo menos, dá uma direção de reflexão. Um redator que traduza pensamentos, dê forma e concretude às ideias, é o ponto onde a IA ainda não alcança. E onde não vejo alcançando tão cedo.
Isso é um contraponto com o que eu acho as abordagens mais “ingênuas” do porquê evitar o uso de IA, que você também pode chamar de abordagens naturalistas. Essas são dos autores que falam, quando mais cultos, da falta de “alma” de um texto. De ritmo. Ou quando querem ser mais descolados ou surfar em uma expressão da moda, dizem que falta sauce.
Essa abordagem assume, toma como verdade para si, que há uma coisa perceptível, mas não mensurável em um texto, que reflete sua origem. Percebe como, colocado nesses termos, isso é paralelo à noção de que há algo de mágico em ir há uma praia, por que não foi algo feito por nenhum ser humano? Como se o “natural” estivesse carregado de uma aura, uma energia, algo que o “original” carrega?
Não gosto dessas abordagens. Elas já tomaram muitas formas. Quando falam de cultura, foram bem personificadas na Escola de Frankfurt, que criticava a disseminação de cultura e a perda da aura do original pela comercialização – ignorando que isso tornava a música clássica e as obras de arte em museus acessíveis ao mundo. Quando falam de moda, valorizam “tecidos naturais” ou “alta costura”, sem pensar nas costas vestidas aos milhões pelo barateio dos métodos com automação. Quando falam de gênero, temos as falas transfóbicas de J. K. Rowling. Quando falam de raça, temos o nazismo e o apartheid.
A visão naturalista, na minha concepção, está superada desde que assumimos que o mundo da tekné grega (origem dos termos “técnica” e “tecnologia” – vista por Aristóteles como menor frente a epistémé (raiz de epistemologia, conhecimento puro) – não é menos natural do que os frutos da natureza. Bruno Latour, em seu trabalho de sociologia, não diz, mas implica que por ser a cultura fruto da natureza humana, é tão natural quanto a natureza. Assim também o são todas as suas ferramentas e dispositivos.
Toda essa noção de “texto orgânico”, “alma” ou variações metafísicas do impacto de uma mão humana por trás do texto são tão vazias para mim quanto me imaginar trocando uma cadeira de plástico comprada em varejo e uma marcenaria artesanal. Não quero sentar em algo com alma. Nem todo texto precisa me passar emoção.
Mas a discussão, volto a dizer, não é sobre se um texto tem alma ou se ela é importante. A discussão é sobre o motivo de se escrever. Antes, escrever assumia um caráter de eternizar e compartilhar ideias. Isso implicava, para o sucesso dessa operação, uma boa organização de ideias. Mas com cada vez mais velocidade, mais dinamismo, mais informação chegando de todos os cantos, o texto, a folha em branco, o exercício de decidir por onde começar e onde parar, o propósito do texto passa a ser organizar a mente. Porque com tanta informação, ideias bem-organizadas dão vazão a bons textos.
A essência da escrita que vai perdurar além do robô está além do carinho estético. A organização da qual um robô é capaz está limitada pelo que lhe é dado, sendo a redação de um prompt, na minha visão, tão “escrita” quanto este texto, que de cabo a rabo, bati numa folha de Word.
Victor Gabry é colunista de Não é Agência. Isso significa que ele é responsável pelos processos de redação. Além disso, o conteúdo não reflete, necessariamente, a visão da portal
Mestrando em Ciência da Informação com tema de pesquisa Domínio do SEO e Regimes de Informação, com mais de 5 anos de experiência prática na área, procuro transformar o complexo em fácil sem fazer parecer simples.
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