Em um dos mais contundentes posicionamentos governamentais já vistos sobre a inteligência artificial generativa, o Senado francês publicou um relatório de informação que acusa a indústria de tecnologia de “parasitismo criativo” e exige o fim da “insustentável gratuidade dos dados” que alimenta seus modelos. O documento, fruto de uma missão de informação da Comissão de Cultura, Educação, Comunicação e Desporto, não apenas diagnostica uma ameaça existencial à criação humana, mas também traça um roteiro de confronto, propondo uma “resposta graduada” que pode culminar na criação de um novo imposto sobre o faturamento das empresas de IA na França.
Intitulado “IA e Criação” e de autoria dos senadores Agnès Evren, Laure Darcos e Pierre Ouzoulias, o relatório argumenta que o modelo de negócios que permitiu o surgimento de ferramentas como ChatGPT e Midjourney foi construído sobre uma premissa fundamentalmente falha e predatória: a exploração em massa e não remunerada de um oceano de conteúdo cultural protegido por direitos autorais.
“Longe de ser uma simples ferramenta, a IA generativa produz dados de saída que entram em concorrência direta com as obras humanas que serviram para sua elaboração”, afirma o texto.
Essa dinâmica, qualificada como “concorrência desleal”, cria um “efeito de evicção”, onde as “quase-obras” geradas por algoritmos ameaçam saturar o mercado, desvalorizar o trabalho humano e, em última instância, levar a uma “desumanização da criação artística”.
Um arcabouço jurídico ultrapassado
O relatório mergulha na complexidade jurídica que permitiu que essa situação se instalasse. O ponto central é a Diretiva Europeia sobre Direitos Autorais no Mercado Único Digital (DAMUN), de 2019. Na época, a diretiva foi considerada um avanço, mas uma de suas exceções, a de “Text and Data Mining” (TDM), foi, segundo o Senado, “desviada” de seu propósito original.
Concebida para a pesquisa científica, a exceção TDM foi interpretada de maneira “muito ampla” pelos desenvolvedores de IA para justificar o que o relatório chama de “o grande garimpo” (le grand moissonnage) de dados. O documento aponta que as empresas de tecnologia ignoraram sistematicamente as duas salvaguardas da diretiva:
- Acesso Lícito: A TDM só se aplica a conteúdos acessados legalmente. O Senado afirma haver poucas dúvidas de que uma vasta quantidade de dados protegidos, e até mesmo pirateados, foi utilizada sem qualquer consentimento.
- O “Opt-out”: A diretiva permite que detentores de direitos reservem-se o direito de proibir a mineração de seus dados. No entanto, o relatório critica a falta de um mecanismo unificado e eficaz para exercer esse “opt-out”, tornando-o, na prática, inoperante e colocando um fardo desproporcional sobre os criadores.
Essa exploração do “vazio jurídico” é comparada à doutrina libertariana do Vale do Silício, resumida pela frase de Grace Hopper, pioneira da computação: “É mais fácil pedir perdão do que permissão”. Para o Senado, a hora de pedir permissão chegou.
A ameaça de um ‘grande colapso’ criativo
O relatório vai além da questão econômica e alerta para um perigo cultural mais profundo: a “dégénérescence” dos modelos de IA. Estudos recentes, citados no documento, demonstram que IAs treinadas com dados gerados por outras IAs entram em um ciclo de degradação. A qualidade do conteúdo cai, os erros se multiplicam e os modelos se tornam um “pálido reflexo de si mesmos”, correndo o risco de um colapso funcional.
A conclusão é poderosa: a IA, para sobreviver e se aprimorar, depende de um fluxo contínuo de criação humana original e de alta qualidade. Portanto, ao minar o ecossistema criativo, a indústria de IA está, a longo prazo, “serrando o galho em que está sentada”.
O texto questiona a capacidade da IA de produzir verdadeira inovação disruptiva. “Uma inteligência artificial poderia ter inventado o ‘acorde de Tristão’ de Wagner ou o último épico de dezessete minutos de Bob Dylan?”, pergunta Jean-Philippe Thiellay, ex-presidente do Centro Nacional da Música, citado no relatório. A resposta implícita é que a verdadeira criatividade, fruto da experiência humana, ainda é um domínio exclusivo.
A resposta graduada: negociação, lei ou imposto
Para reequilibrar o jogo, a missão do Senado propõe um ultimato em três etapas, uma estratégia que dá à indústria a chance de cooperar antes de enfrentar a força da lei.
- Etapa 1: a concertação (primavera de 2025). A primeira e preferível solução é o sucesso da mesa de negociação em andamento entre desenvolvedores de IA e detentores de direitos, mediada pelos ministérios da Cultura e da Economia. O objetivo é alcançar um consenso sobre a valoração dos dados e os modelos de remuneração.
- Etapa 2: a presunção de utilização. Se a negociação falhar, o Senado propõe uma iniciativa legislativa para introduzir no direito francês o conceito de “presunção de utilização”. Isso inverteria o ônus da prova: com base em um “feixe de indícios” (como a semelhança entre obras), caberia à empresa de IA provar que não utilizou determinado conteúdo, em vez de o criador ter que provar o uso. Seria uma ferramenta poderosa para forçar a transparência e levar as empresas de volta à mesa de negociação.
- Etapa 3: a taxação como último recurso. Em caso de um novo fracasso, a solução final seria a criação de um imposto sobre o faturamento realizado na França por fornecedores e implementadores de IA. O relatório sugere que a alíquota seja fixada em um “nível dissuasivo”, não apenas para gerar receita para um fundo cultural, mas para tornar a não conformidade economicamente inviável.

A batalha pela soberania: Europa como ‘idiota útil’
O relatório posiciona essa luta em um dramático cenário geopolítico. A Europa, argumenta o texto, corre o risco de se tornar o “idiota útil” dos americanos. Possuindo os “dados-obras” (données-œuvres) de maior qualidade e diversidade do mundo — o combustível premium para os motores de IA —, o continente estaria cedendo gratuitamente seu maior ativo estratégico para que as gigantes americanas consolidem seu domínio, sem que a própria Europa desenvolva uma indústria verdadeiramente soberana e competitiva.
Ao defender uma “terceira via” europeia, que valoriza e protege seus ativos culturais, o Senado francês não está apenas defendendo seus artistas. Está propondo um novo paradigma para o desenvolvimento da IA – um que seja ético, sustentável e que, ao forçar a remuneração de dados de alta qualidade, pode, paradoxalmente, dar às empresas europeias uma vantagem competitiva baseada na qualidade e na segurança jurídica, em vez de uma corrida para o fundo do poço regulatório. Os próximos meses dirão se a Big Tech ouvirá o ultimato ou se a França está prestes a disparar o primeiro tiro em uma nova guerra comercial e cultural.
Discussões no Brasil
Enquanto o Senado francês lança um ultimato à indústria de tecnologia, o Brasil avança com seu próprio marco regulatório para a inteligência artificial, adotando uma abordagem distinta, porém com preocupações convergentes. Aprovado no Senado Federal em 10 de dezembro de 2024, o substitutivo do senador Eduardo Gomes (SD-TO) ao PL 2.338/2023, originalmente proposto pelo presidente da Casa, Rodrigo Pacheco, representa um esforço robusto para equilibrar inovação e direitos fundamentais, embora com uma ênfase particular na gestão de riscos.
A proposta brasileira, que agora aguarda votação na Câmara dos Deputados, é descrita por Laura Schertel, relatora da comissão de juristas que originou o projeto, como um “arcabouço geral de regulação”. Diferente do foco francês na exploração de dados culturais, o marco brasileiro estrutura-se em torno de uma classificação de riscos, onde sistemas considerados de “alto risco” — como aqueles usados em recrutamento de emprego, concessão de crédito, gestão de imigração e sistemas de identificação biométrica — estarão sujeitos a regras mais rígidas.
A supervisão será realizada pelo Sistema Nacional de Regulação e Governança de Inteligência Artificial (SIA), coordenado pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) em conjunto com outros órgãos. Como aponta Schertel, “a gente só tira as normas do papel se houver fiscalização”, destacando a importância de uma estrutura regulatória ativa para garantir a efetividade da lei.
Direitos autorais: uma convergência de princípios
Apesar das diferenças na abordagem geral, o projeto brasileiro e o relatório francês encontram um terreno comum significativo no capítulo de direitos autorais. O texto aprovado no Senado brasileiro estabelece a necessidade de remunerar os titulares de obras utilizadas para treinamento e desenvolvimento de IA, ecoando a principal demanda francesa.
“Sabemos que várias das obras utilizadas são informações protegidas pelo direito do autor. É razoável que as pessoas que criaram esse conteúdo sejam remuneradas em razão do tratamento desses dados”, explica Laura Schertel. O projeto determina que essa remuneração se baseie nos princípios de razoabilidade e proporcionalidade, levando em conta o porte da empresa e o impacto concorrencial — critérios que, embora não detalhados, abrem a porta para negociações complexas, semelhantes às que o Senado francês deseja forçar.
Assim como na Europa, a proposta brasileira prevê exceções para usos científico, de pesquisa ou cultural, indicando um alinhamento global na tentativa de proteger o conhecimento acadêmico e o patrimônio público, enquanto se busca compensar a exploração comercial.
A governança baseada em direitos, mas com lacunas
O pilar do projeto brasileiro é a proteção dos direitos fundamentais. A proposta garante o direito à não discriminação, à correção de vieses, à explicabilidade das decisões automatizadas e, crucialmente, o direito à revisão humana, um ponto que Schertel destaca como uma inovação em relação à legislação europeia.
Contudo, a Coalizão Direitos na Rede, que reúne mais de 50 organizações da sociedade civil, aponta lacunas preocupantes. Alexandre Arns Gonzalez, consultor da coalizão, critica a remoção de dispositivos que obrigariam uma avaliação de impacto prévia antes do lançamento de sistemas de IA no mercado. A obrigação foi substituída por uma mera “indicação de boas práticas”, o que, segundo críticos, enfraquece a capacidade preventiva da lei.
Outro ponto de tensão foi a retirada da proposta de considerar as redes sociais como sistemas de alto risco para a infância e, mais importante, a exclusão da regulação sobre moderação de conteúdo das plataformas. A decisão de tratar a moderação e a recomendação de conteúdo em uma lei separada é vista pela Coalizão como um retrocesso na busca por transparência, deixando um ponto cego sobre como as grandes plataformas utilizam a IA para moldar o discurso público.
Contexto de 2024
A aprovação do marco da IA no Senado brasileiro se insere em um contexto de intensos debates sobre a governança digital no país. Em 2024, o Brasil assumiu a presidência do G20, colocando temas como inclusão digital e ética na IA na pauta global. Ao mesmo tempo, o país enfrentou seus próprios desafios internos, como a expansão da conectividade 5G, que totalizou R$ 7,6 bilhões em investimentos apenas no primeiro trimestre, contrastando com as barreiras de acesso persistentes em regiões remotas como a Amazônia Legal.
O debate sobre a regulação da internet se intensificou, abrangendo desde a proteção da infância e o combate às fake news até a soberania digital e a responsabilidade civil das plataformas. A discussão sobre o marco da IA, portanto, não é um evento isolado, mas o ápice de um ano em que o Brasil buscou consolidar seu papel na governança digital global, enquanto lidava com as complexidades de sua própria transformação tecnológica. O próximo passo na Câmara dos Deputados será decisivo para determinar se o arcabouço final será robusto o suficiente para transformar princípios em prática efetiva.
Proposta da FecomercioSP
A FecomercioSP (Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo), atua como uma voz ativa no debate sobre a regulamentação da Inteligência Artificial no Brasil.
Seus ideais e propostas são pautados, de acordo com a instituição, pela busca de um equilíbrio entre o fomento à inovação e o estabelecimento de um marco regulatório responsável.
A Federação considera a IA um “elemento primordial para os desenvolvimentos econômico e social e para a competitividade”. Para a FecomercioSP, a IA é essencial para a sobrevivência e a competitividade de países e negócios, trazendo eficiência, redução de custos e aumento de qualidade no atendimento ao consumidor final, além de melhorias em controle de estoque, entregas, sistemas de transporte inteligentes e marketing direcionado.
Em suma, a entidade vê a IA como um elemento-chave para a redução do Custo Brasil, o aumento da produtividade das empresas e a geração de riqueza para o País.
A FecomercioSP e o Senado francês apresentam abordagens distintas em relação à regulação da Inteligência Artificial (IA), especialmente no que tange aos direitos autorais e ao modelo de negócio das empresas de tecnologia.
Pontos de Conflito/Diferença:
- Direitos Autorais e “Parasitismo Criativo”:
- Senado Francês: Acusa a indústria de tecnologia de “parasitismo criativo” e exige o fim da “insustentável gratuidade dos dados” que alimentam os modelos de IA generativa. O relatório argumenta que o modelo de negócios de ferramentas como ChatGPT e Midjourney é “predatório” e construído sobre a exploração em massa e não remunerada de conteúdo cultural protegido por direitos autorais. Propõe uma “presunção de utilização” para inverter o ônus da prova em casos de uso de conteúdo protegido e, como último recurso, um imposto sobre o faturamento de empresas de IA na França para gerar receita para um fundo cultural e desencorajar a não conformidade.
- FecomercioSP: Reconhece que o equilíbrio entre fomentar a inovação e proteger direitos autorais é um dos principais desafios da regulação global de IA. Afirma que este é um tema longe do consenso e que a imensa quantidade de dados para o desenvolvimento de modelos de IA cria dificuldades técnicas para identificação e remuneração. Sugere que o debate sobre direitos autorais seja separado da regulação geral da IA, tornando-se objeto de um projeto de lei específico para a atualização da Lei de Direitos Autorais, a fim de não prejudicar o avanço da regulação da IA no Brasil.
- Regulação da Tecnologia vs. Uso:
- Senado Francês: Embora o foco principal seja o “parasitismo criativo” e a remuneração de dados, a proposta de taxação do faturamento e a “presunção de utilização” implicam uma regulamentação mais direta sobre as operações e modelos de negócios das empresas de IA.
- FecomercioSP: Defende “regular o uso, e não a tecnologia”. Argumenta que a IA é uma tecnologia de propósito geral em constante desenvolvimento e que a regulação deve ser flexível e adaptável. Propõe evitar regras específicas para tipos específicos de IA, deixando elementos regulatórios para mecanismos infralegais.
- Abordagem Regulatória:
- Senado Francês: Propõe uma “resposta graduada” que inclui negociação, iniciativa legislativa com “presunção de utilização” e, por fim, taxação. Demonstra uma postura mais intervencionista e de confronto com as Big Techs.
- FecomercioSP: Propõe uma “abordagem principiológica e contextual baseada em riscos”. Sugere que a regulação deve modelar níveis escalonados de riscos e criar salvaguardas proporcionais, conferindo flexibilidade aos reguladores para atuar com base no contexto de uso. Além disso, defende a “autorregulação regulada”, onde a norma estabelece parâmetros mínimos de governança, e instituições de autorregulação desenvolvem códigos de conduta específicos para diferentes setores.
- Soberania Digital:
- Senado Francês: Alerta para o risco de a Europa se tornar o “idiota útil” ao ceder seus “dados-obras” de alta qualidade para gigantes americanas, sem desenvolver uma indústria soberana. Defende uma “terceira via” europeia que valorize e proteja seus ativos culturais.
- FecomercioSP: Enfatiza a necessidade de um “Plano de Nação para a Era Digital” para evitar que o Brasil seja apenas um “usuário passivo de tecnologias desenvolvidas por outros países”, o que significaria “perder soberania digital, autonomia estratégica e competitividade global”. Propõe incentivar a oferta local de infraestrutura computacional, estimular a oferta de modelos treinados em português, e desenvolver modelos com potencial exportador usando grandes bases de dados públicas nacionais.
Pontos de Convergência
Por outro lado, o Senado da França e a Fecomércio concordam com:
- Importância da IA: Ambos os documentos reconhecem a IA como um elemento primordial para o desenvolvimento econômico e social.
- Inovação Responsável: A FecomercioSP incentiva a “inovação responsável”, enquanto o Senado francês busca um desenvolvimento da IA que seja “ético, sustentável”.
- Competitividade: Ambos os lados buscam garantir a competitividade de seus respectivos países ou blocos no cenário global da IA.
- Desafios Regulatórios: Ambos reconhecem a complexidade e os desafios da regulação da IA, especialmente considerando a rápida evolução da tecnologia.
Em resumo, enquanto a FecomercioSP adota uma postura mais cautelosa e flexível, priorizando a inovação, a autorregulação regulada e a adaptação do arcabouço jurídico existente, o Senado francês assume uma postura mais assertiva e confrontadora, focando na proteção dos direitos autorais e na garantia de uma remuneração justa para os criadores, chegando a propor impostos e inversão do ônus da prova para combater o que considera “parasitismo criativo”.
Publisher do "Não é Agência!" e Especialista de SEO, Willian Porto tem mais de 21 anos de experiência em projetos de aquisição orgânica. Especializado em Portais de Notícias, também participou de projetos em e-commerces, como Americanas, Shoptime, Bosch e Trocafone.
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