Novos dados revelam que mais de dois terços do tráfego que o Google envia para os maiores portais de notícias do mundo já vêm do seu feed de conteúdo, sugerindo uma dependência preocupante desta fonte de visitas e receita publicitária.
Desde que foi relançado em 2018, o Google Discover — aquele feed de notícias servido nos aplicativos do Google e no sistema Android — tornou-se um pilar para muitos publishers. Agora, dados exclusivos da plataforma de análise Chartbeat, obtidos pelo Press Gazette, quantificam essa dependência: 68% de todo o tráfego do Google para quase 2.000 sites de mídia globais vem do Discover. A busca tradicional responde por apenas 32%.
Discover como rei
No panorama geral do tráfego, o Google representa 25% de todas as visitas aos publishers. Grandes portais são, em sua maioria, menos dependentes de Google, enquanto os médios e pequenos dependem mais dele para atrair tráfego. A excessão pode estar em portais de influenciadores, que conseguem performar bem via redes sociais.
Esse número se divide em 17% vindos do Discover e apenas 8% da busca orgânica. Essa transição se acelerou com a implementação das Visões Gerais de IA (AI Overviews) do Google, tornando o Discover, para muitos, a maior fonte individual de visitantes.
Por mais que o Google desminta, diversos estudos têm confirmado a queda de tráfego vinda de pesquisa. Aqui, está apenas mais um desses casos.

O poder do Discover
Embora o Google monetize o Discover com anúncios, este produto existe mais por razões estratégicas do que por seu retorno comercial. A Alphabet não detalha a receita do Discover em seus balanços financeiros. No entanto, um cálculo aproximado, baseado nos 800 milhões de usuários ativos mensais de 2019, sugere que a plataforma gera entre 500 milhões e 2 bilhões de dólares.
Isso representa de 0,1% a 0,5% da receita total da empresa. Em outras palavras, o Google poderia encerrar o Discover amanhã, e o impacto para seus investidores e negócios principais (busca, publicidade, nuvem e IA) seria quase nulo.
Então, por que mantê-lo? Como bem mostra, PressGazette, é poder. Primeiro com o mercado, depois com os usuários.
Uma moeda de troca na relação com os publishers
Muito mais importante que a receita, o Discover dá ao Google uma poderosa alavancagem em sua relação cada vez mais fraturada com os publishers, dos quais depende para alimentar seus produtos de busca e IA.
À medida que o tráfego da busca orgânica diminui, impactado pela IA, o tráfego do Discover preenche parte dessa lacuna. Isso permite que o Google defenda o “valor” que oferece aos produtores de conteúdo sem precisar pagar por ele, usando o acesso ao Discover como moeda de troca.
O Google já demonstrou estar disposto a usar essa vantagem:
- Na França: Diante de novas leis de direitos autorais, o Google pressionou os publishers a assinarem acordos de licenciamento sem compensação financeira. A tática foi usar o tráfego do Discover como isca para forçá-los a ceder seu conteúdo gratuitamente na busca.
- Com a IA: Atualmente, os publishers podem remover seu conteúdo das Visões Gerais de IA usando o comando “nosnippet”. No entanto, essa ação também prejudica a visibilidade no Discover e na busca geral, criando uma escolha impossível.
Se o declínio do tráfego de busca continuar, chegará um ponto em que a única razão para um publisher permanecer indexado no Google será o tráfego vindo do Discover.
A disputa entre Google e França sobre os direitos autorais
Em 9 de abril de 2020, a Autoridade Francesa de Concorrência ordenou que o Google negociasse de boa-fé com editores e agências de notícias. A Autoridade considerou que o Google detinha uma posição dominante no mercado e que suas práticas eram provavelmente anticompetitivas.
As razões apresentadas foram as seguintes:
- Imposição de condições desleais: O Google impôs unilateralmente a não remuneração pelo uso de conteúdo protegido, sem dar aos editores e agências de notícias qualquer chance de negociação.
- Abuso de posição dominante: A empresa se recusou a fornecer as informações necessárias para calcular a remuneração devida e contornou a nova lei ao utilizar títulos completos dos artigos, alegando que isso não estava sob o escopo da legislação.
A Autoridade ressaltou que esse comportamento, em um momento de crise para o setor de imprensa, provavelmente privaria os veículos de uma fonte vital de receita, comprometendo a sustentabilidade de suas atividades.
Com base nisso, a Autoridade Francesa de Concorrência determinou que o Google deveria:
- Negociar de boa-fé com editores e agências de notícias que o solicitassem, aplicando critérios transparentes. Essas negociações deveriam ser retroativas a 24 de outubro de 2019.
- Concluir as negociações em até três meses a partir do pedido de um editor ou agência de notícias.
- Enviar relatórios mensais para a Autoridade, detalhando o cumprimento da decisão.
Além disso, a decisão proibiu que o Google alterasse a indexação, classificação e apresentação dos conteúdos durante as negociações.
Manutenção do status-quo
Outro ponto relevante no Discover é a manutenção do status-quo. Ao integrar um feed altamente engajante e viciante, a empresa está, em última análise, trabalhando em prol do conservadorismo dos usuários.
Quanto mais as pessoas utilizam o app do Google, menores são as chances de que elas venham a usar outro buscador em curto e médio prazo.
Além disso, dificultou que outras empresas conseguem ter escala em seus projetos de feeds e ocupar o espaço, como a Samsung.

Em 2023, a empresa tentou um rebranding para aproximá-lo do Discover, que a essa altura, já era muito utilizado em todo mundo.

Menos regulação, mais liberdade para o Google
Outro ponto de vulnerabilidade é a falta de supervisão regulatória. Enquanto a busca do Google é alvo de investigações e regulações por órgãos de concorrência em todo o mundo, como no Reino Unido, o Discover opera em uma zona cinzenta.
Diferente de mudanças no algoritmo de busca — que são acompanhadas de perto pela indústria —, o Google pode alterar arbitrariamente o que aparece no Discover para servir a seus interesses estratégicos, sem grandes consequências comerciais ou escrutínio público. Essas mudanças já causaram prejuízos severos a publishers, levando a demissões significativas de jornalistas em redações de alcance nacional.
Falamos sobre isso quando o Google fez severas mudanças nos algoritmos de Discover brasileiro. Embora as mudanças tenham sido profundas e levado portais a fecharem as portas, pouco se discutia no cenário nacional. Os principais portais e influencers apenas pincelaram o tema.
Isso se deve, entre outras coisas, a maior dificuldade em rastrear e quantificar, em dados de mercado, os resultados obtidos. Semrush e Similarweb, por exemplo, nem mesmo conseguem distinguir os resultados de Discover do Direto.
Além disso, a maior circulação de dinheiro em SEO está no e-commerce e na venda de produtos SaaS. Dessa maneira, menos pessoas se importam com o tráfego vindo de Discover.
Isso gera maior facilidade para golpistas e Youtubers ensinarem fórmulas para conseguir resultados no canal.
O tipo de conteúdo que o Discover recompensa é um desserviço ao jornalismo
Em uma era ameaçada pela IA, a estratégia da maioria dos publishers deveria ser criar um relacionamento direto e pago com leitores fiéis. O foco deveria estar em servir a um público definido com conteúdo de valor, algo que a IA não pode replicar facilmente.
Perseguir o sucesso no Google Discover vai na contramão dessa lógica.
- Tráfego de baixa intenção: Usuários da busca chegam a um site para satisfazer uma necessidade específica. No Discover, o conteúdo é empurrado para o usuário com base em curiosidade.
- Incentivo ao clickbait: O conteúdo que performa bem no Discover recompensa títulos que geram curiosidade, imagens chamativas e notícias de última hora. Em resumo, incentiva a criação de conteúdo viral e “caça-cliques”, pelo qual os consumidores raramente estão dispostos a pagar, seja com dinheiro ou com seus dados. Nesse sentido, ainda mostramos que os portais de forma consciente ou não optaram por largar a pesquisa para se concentrarem em Discover.
- Visitantes efêmeros: O tráfego do Discover é volátil. Os usuários clicam em algo que lhes chama a atenção, mas raramente visitam uma segunda página, retornam ao site ou se convertem em assinantes. Não é um tráfego que gera valor a longo prazo.
Tudo isso desvia recursos e atenção da produção de jornalismo de qualidade, que é o único caminho para a sustentabilidade na nova era da mídia.
De forma reiterada, temos visto acontecer no Brasil. Inclusive, os resultados têm chamado atenção de especialistas internacionais:
I've never been to Brazil and don't know much about local publishing ecosystem! But why is that almost everyone there is creating Discover first sites!? which is never the right strategy in long run (even the well know pubs there are doing it)
— Gagan Ghotra (@gaganghotra_) July 21, 2025
(Nunca estive no Brasil e não sei muito sobre o ecossistema editorial local! Mas por que quase todo mundo lá está criando sites “Discover First”? O que nunca é a estratégia certa a longo prazo (mesmo as editoras mais conhecidas de lá estão fazendo isso).
Mesmo depois de o Google ter limitado o alcance de conteúdo de baixa qualidade, ainda há portais importantes dobrando a aposta.
Uma fundação construída sobre areia movediça
A crescente dependência do Discover cria uma nova vulnerabilidade de plataforma, sujeita a todos os riscos inerentes a esse modelo. O perigo é ainda maior quando a plataforma pertence ao Google, uma empresa que já provou, com o uso de conteúdo em suas ferramentas de IA, estar disposta a ignorar os interesses dos publishers para garantir suas próprias vantagens.
Grandes partes da indústria se tornaram dependentes do Discover, mas esta é uma posição cada vez mais precária. Tratar esse tráfego como um bônus, e não como a base de uma estratégia de audiência sustentável, tornou-se uma questão de sobrevivência.
Confiar no Google não é uma boa aposta. Entretanto, o preço para se ter audiência em massa, atualmente, passa exatamente por fazer um jornalismo estranho e de difícil defesa no futuro.
Publisher do "Não é Agência!" e Especialista de SEO, Willian Porto tem mais de 21 anos de experiência em projetos de aquisição orgânica. Especializado em Portais de Notícias, também participou de projetos em e-commerces, como Americanas, Shoptime, Bosch e Trocafone.
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