A síndrome de Estocolmo e o jornalismo: como o Google ainda é bem percebido entre os publishers?

Willian Porto
11 Min Read

Vários dos publishers, que hoje padecem nas mãos do Google foram mais astutos, perspicazes e corajosos em época mais dura para o jornalismo: a ditadura militar. O Cálice tecnológico, por outro lado, mostrou-se ainda mais eficaz.

“Nossa relação com o Google sempre foi boa”.

Assim um editor de um grande site, que não quis se identificar, comentou a relação com o Google. Ainda que no último ano o site tenha perdido mais da metade da audiência orgânica, o portal avalia positivamente todos os projetos do Google em que está incluído.

Esse parece um cenário parecido com o enfrentado por Elizabeth Douglas do wikiHow. Embora esteja sofrendo com consecutivas quedas, a empresa se dispôs a defender o Google em audiência no Departamento de Justiça (DoJ) americano.

Por questões de sobrevivência, vemos editores nutrindo sentimentos positivos quanto aos colaboradores e a própria empresa. Seria a síndrome de Estocolmo corporativa?

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Quando foi que perdemos o controle?

Talvez, o jornalismo na sua era moderna nunca tenha tido plenamente o controle. Entretanto, nesse momento, mesmo no Brasil, muitos publishers têm relação parecida com Elizabeth e a Big Tech. Em vez de tentarem lutar por seus direitos, há muitos que sentam em posições pouco cômodas, mas que ainda sejam úteis para alguma coisa.

Isso mostra o quanto a estratégia do Google em manter relacionamentos diversos com editores é frutífera. Embora o valor líquido das parcerias seja questionável, elas são suficientes para que as publicadoras entendam que estão melhores com ela do que sem ela.

Isso acontece em um nível tão alto que os editores reclamam menos do que deveriam. Em vez de verem o Google como um vilão da Internet, passam a vê-lo como um legítimo parceiro, mesmo que ele esteja vilipendiando, aos poucos, os resultados da própria empresa.

De novo, talvez, nunca tívemos pleno controle. Mas, provavelmente, nunca existiu uma era em que o vilão se tornasse, em algum ponto, no mocinho.

Nesse sentido, no Congresso da Abraji, durante a fala de responsáveis por grandes portais, surgiu a comparação entre o Vaticano, acusado no exemplo de concentração de poder, e o Padre Júlio Lancelloti, como alguém que faz diferente das diretrizes superiores.

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Isso revela como os portais veem que a relação interpessoal com representantes do Google é diferente do que a empresa, como um todo, deseja implementar.

Entretanto, ao que parece, é justamente essa a estratégia adotada pela Big Tech. Ao fazer com que a relação micro seja considerada mais satisfatória que a macro, as pessoas acreditam que perdê-la seria um baque ainda maior para seus negócios.

A síndrome de Estocolmo

Em contextos que envolvam sequestros, agressões e outros relacionamentos abusivos, há relatos em que as próprias vítimas envolvem relacionamento emocional positivo com os agressores. Isso é conhecido como síndrome de Estocolmo.

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A chamada “Síndrome de Estocolmo” teve origem em um assalto a banco ocorrido na Suécia em 1973, quando reféns, entre eles Kristin Ehnmark, criaram vínculos afetivos com seus sequestradores. O psiquiatra Frank Ochberg descreveu o fenômeno como um mecanismo de sobrevivência diante de um medo intenso. O episódio, amplamente noticiado pela imprensa, tornou-se um símbolo da complexidade das reações humanas em circunstâncias extremas.

No caso envolvendo o Google e o editores, talvez, não seja muito distinto. Embora os portais sejam frequentemente prejudicados pelo Google, eles ainda têm relevante apreço pela empresa.

Na segunda parte da série de Não é Agência sobre o Google News, repercutimos que, por mais que os pequenos portais se mostrassem insatisfeitos (100% dos entrevistados não veem transparência nas ações da empresa), todos eles gostariam de participar dos eventos e parcerias com a empresa.

Se, por um lado, isso pode significar que as empresas ainda querem manter alguma lucratividade, usando o Google para isso, por outro, demonstra o quanto a Big Tech ainda consegue se manter relevante, interessante e bem-quista, ao menos em parte, por aqueles que foram mais prejudicados por ela.

A destruição da Web e a defesa de seus algozes

Sites independentes, como o wikiHow (que depende da publicidade para cerca de 80% de sua receita), estão no meio de um que tem sido chamado de “apocalipse de IA”. Este caos é, ironicamente, infligido pela própria parte que o wikiHow defende: o Google.

As novas AI Overviews e chatbots de IA nas páginas de resultados de pesquisa do Google fornecem as respostas diretamente aos usuários, o que tem o efeito de impedir que as pessoas cliquem nos links das páginas da web. Esse movimento acelera a tendência de “Google Zero” – o ponto em que o Google deixa de encaminhar tráfego de pesquisa para sites de terceiros.

Ao não clicar nas páginas, os usuários não veem nem clicam nos anúncios, minando a receita dos editores. Embora o Google negue que suas AI Overviews impeçam uniformemente os cliques, a empresa disse ao tribunal que a “web aberta já está em rápido declínio”.

O medo existencial do WikiHow

O wikiHow, um site que oferece 450.000 artigos instrutivos e que depende da publicidade para cerca de 80% de sua receita, foi o palco do testemunho de Douglas.

  1. Ameaça externa: Elizabeth Douglas já lida com um grande desafio existencial: os resumos de IA dos mecanismos de busca, que entregam respostas diretamente na página de resultados, impedindo que os usuários cliquem nos sites e vejam anúncios. Ironicamente, essa ameaça é infligida pelo próprio Google, a quem ela estava defendendo.
  2. A defesa do GAM: Apesar disso, ela é uma usuária entusiasmada do Google Ad Manager (GAM). Sua defesa foi um “infomercial” emotivo, destacando a facilidade, a conveniência e o bom suporte que recebe do Google. Ela usou servidores de anúncios concorrentes, mas os achou menos eficientes.
  3. A preocupação com o remédio: Seu grande medo é que o DOJ force o Google a vender ou desmembrar o GAM. A possibilidade de ter que migrar para outro servidor de anúncios a preocupa com questões de latência, suporte e preço. “São as incógnitas que me trazem aqui hoje”, afirmou. Ela teme o “trabalho” e o tempo que teria que investir em uma nova configuração.

Ter um relacionamento tão próximo é relevante para o Google. É estratégico. Provavelmente, não se trata, como alguns de forma ingênua acreditam, de colaboradores bons em empresas ruins. Mas a experiência altamente positiva com portais-chave serve como forma de controlar a narrativa e, principalmente, os sentimentos para com a empresa inteira.

Se existir, de alguma maneira, o sentimento de perda, há tendência de pensar que se está ruim com o Google, pior sem ele.

A matéria produzida pela Agência Pública, mostrou termos parecidos utilizados por um portal da Indonésia: “Mas é melhor do que nada”, ao se referir aos treinamentos e atividades oferecidas pelo Google News Initiative. A pessoa se justificou, dizendo que “somos uma mídia pequena e muito pobre.”

No mesmo conteúdo, tornou-se claro, também, como mesmo portais mais identificados com a esquerda política temessem que o grupo Globo fosse o mais privilegiado com o PL2630. No caso, o Google poderia diminuir o investimento efetuado para tais portais.

Dependência e o papel de “pastoreio” do Google

O testemunho de Elizabeth revelou uma profunda dependência do ecossistema Google, pintando a empresa como uma força estabilizadora essencial para a internet:

  • Ameaça à Internet: Ela expressou uma “preocupação existencial ainda maior”: se o Google for retirado do mercado, o restante da internet ficaria com “bons e maus atores”, e sem o “pastoreio” do Google, “a internet poderia desmoronar”.
  • Vínculo financeiro: Durante o interrogatório, ficou claro o peso da relação: cerca de 30% da receita do wikiHow vem diretamente do AdX (a plataforma de troca de anúncios que o DOJ quer que o Google venda) e outros 10-15% de um acordo de licenciamento com o Google.

A juíza Brinkema, sem dúvida, notou que Douglas não era apenas uma cliente satisfeita, mas uma cliente altamente dependente que precisava permanecer nas boas graças da gigante de tecnologia.

Isso mostra outra faceta importante das parcerias diversas do Google com os portais. Ao deixá-los dependentes em termos de tecnologia, recursos financeiros e estratégicos, os editores tornam-se incapazes de protestarem e, até mesmo, ingressarem com ações contra a empresa.

Deve-se frisar que, enquanto a OpenAI é processada pela Folha de São Paulo, nenhum grande editor tentou o mesmo remédio com o Google. Embora exista uma ação no Cade (Conselho Administrativo de Desenvolvimento Econômico), os publishers não optaram por tentar reparar individualmente os danos sofridos.

Os cenários são mais complexos do que parecem quando uma empresa, mesmo prejudicando seus principais dependentes, ainda é vista de maneira positiva e essencial para a manutenção do ecossistema. Isso é demonstrado quando os principais eventos ligados aos publishers e ao jornalismo têm como principal patrocinador o Google.

Vários dos publishers, que hoje padecem nas mãos do Google foram mais astutos, perspicazes e corajosos em época mais dura para o jornalismo: a ditadura militar. O Cálice tecnológico, por outro lado, mostrou-se ainda mais eficaz.

Veja toda nossa série sobre o Google News

01- Google favorece determinados veículos? Relatório coloca ainda mais dúvidas na relação entre Google e Publishers

02 – Pesquisas em todo o mundo também colocam em xeque o Google News e suas iniciativas

03 – Editores de portais de tamanhos distintos têm visões diferentes sobre o Google News e suas iniciativas

04 – “Big Tech, Pequeno Jornalismo”; Google Showcase ajuda a aumentar a desigualdade no Brasil

Publisher e Especialista em SEO | Web |  + posts

Publisher do "Não é Agência!" e Especialista de SEO, Willian Porto tem mais de 21 anos de experiência em projetos de aquisição orgânica. Especializado em Portais de Notícias, também participou de projetos em e-commerces, como Americanas, Shoptime, Bosch e Trocafone.

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