Em um cenário digital cada vez mais dominado por algoritmos e inteligência artificial, a decisão de Rodrigo Ghedin, criador do “Manual do Usuário”, de bloquear o acesso do Google ao seu site gerou curiosidade de muita gente, inclusive de Não é Agência.
Em uma entrevista aprofundada, Ghedin compartilha suas perspectivas sobre a relação entre produtores de conteúdo e as grandes plataformas, o futuro do jornalismo e os desafios da monetização no mercado editorial.
Ceticismo ou consciência sobre algoritmos e SEO?
Eu já conhecia o trabalho do Ghedin há alguns anos. Na época, alguma das postagens sobre Google viralizou em grupos de SEO. Os profissionais avaliavam o quanto ele estava enganado. Mas, provavelmente, é sempre o efeito de tentar defender a profissão. Entendo.
Rodrigo Ghedin esclarece que sua postura em relação aos algoritmos de recomendação não é de ceticismo, mas sim de “consciência”, “preocupação” e “atenção”. Ele reconhece que esses algoritmos funcionam, e é justamente nesse funcionamento que reside o perigo: a dependência e a sedução que podem levar a efeitos colaterais nocivos e não evidentes.
Por outro lado, seu ceticismo é direcionado ao SEO (Search Engine Optimization). Ghedin argumenta que, sem testes controlados e com os critérios arbitrários e secretos do Google, é impossível atribuir resultados específicos a ações de SEO. Ele compara a “fé religiosa” no SEO a um contrassenso em uma área que se gaba de objetividade e métricas, um fenômeno que ele também observa nos “evangelistas de IA”.
Ouça nossa repercussão:
A decisão de bloquear o Google
A atitude de bloquear o Google foi uma reação direta à quebra do acordo tácito entre a gigante da tecnologia e sites como o “Manual do Usuário”. Anteriormente, o Google enviava tráfego qualificado em troca do conteúdo. Com a ascensão da IA generativa (“AI Overviews”), o Google passou a “regurgitar” o conteúdo absorvido dos sites em sua própria interface, retendo os usuários e não gerando mais acessos para os produtores de conteúdo.
Ghedin havia realizado um experimento similar em junho de 2024, notando uma queda visível nos acessos. Contudo, ele enfatiza que o “Manual do Usuário” não depende de tráfego bruto para gerar receita, uma decisão consciente desde o início para evitar os “incentivos potentes e destrutivos” de atrelar receita ao volume de acessos. O modelo de negócio do Manual se baseia em assinaturas de leitores que valorizam o conteúdo e se tornam apoiadores.
O motivo parece ser o mesmo em diversos portais estrangeiros, como a Business Insider. Ela deseja menos impacto de sazonalidade e de canais que podem, facilmente, se evaporar.
Apesar da iniciativa, Ghedin acabou desistindo do bloqueio, reconhecendo que se tornou uma “corrida armamentista” contra robôs de empresas trilionárias e startups inescrupulosas, uma batalha que, sozinho, ele não poderia vencer.
Atualmente, apenas bots diversos, principalmente os de IA, estão bloqueados:

Posteriormente, Rodrigo alertou que os robôs de IA aparecem bloqueados porque ativei o “AI Audit” da Cloudflare no dia 1º/7, quando eles anunciaram o período de testes do marketplace de crawling de IA. Inscrevi-me para testar, ainda não rolou o convite, mas já deixei o AI Audit ativado.
O mercado editorial e os incentivos errados
Ghedin avalia que o atual cenário do mercado editorial, com muitos publishers apelando para conteúdos de baixa qualidade, é um resultado direto dos “incentivos errados” proporcionados pelo Google e pela indústria de SEO, que ele ironicamente chama de “Google Optimization” (GO).
Ele aprofunda o debate, mencionando a “pasteurização” promovida pelo digital, onde tudo vira “conteúdo” e a disputa por atenção sacrifica a qualidade. Para ele, “brigar por cliques é uma guerra perdida”. Nesse sentido, o jornalismo se beneficiaria ao capitular dessa batalha.
O resultado da guerra do Discover reflete o que disse Rodrigo. Jornais e portais consolidados lutam para ver quem faz o pior conteúdo e, assim, têm a recompensa desejada. O Topa tudo por dinheiro, por mais que compreensível, leva o jornalismo a um triste lugar.
O modelo de negócio do Manual do Usuário
O “Manual do Usuário” se sustenta com um custo operacional baixíssimo, resultado de otimização de código e boas escolhas tecnológicas. O maior custo, segundo Ghedin, é a sua própria renda, que lhe permite viver com dignidade.
A receita provém de duas fontes principais: assinaturas e anunciantes diretos. Além disso, alguns trabalhos freela esporádicos surgem a partir do Manual, que funciona como uma “vitrine” de suas habilidades. Os produtos com a marca do Manual geram uma pequena renda extra, mas existem mais por serem “legais” e uma forma de colaborar com profissionais que ele admira.
Ele expressa sua aversão a pensar em dinheiro e a cobrar por seu trabalho, sem ambições de enriquecer. Ele busca ser honesto com seus assinantes e anunciantes, e tem encontrado pessoas que valorizam sua postura heterodoxa e as reflexões que ele promove.
A incerteza do futuro da monetização
Sobre a monetização dos portais, Ghedin não tem uma resposta definitiva. Acredito que ninguém tenha. Ele ressalta que o Manual funciona por ser um blog sem funcionários e otimizado para ele. Um negócio maior e mais ambicioso exigiria adaptações ou o descarte de muitas práticas atuais.
A única previsão que ele se sente confortável em fazer é que o modelo de publicidade programática, baseado em volume de acessos (e que “nunca funcionou direito”), tende a piorar ainda mais com o surgimento de IAs de pesquisa como a Perplexity e os próprios AI Overviews do Google.
A participação do Google no mercado editorial
Ghedin acredita que a participação do Google no mercado editorial será “cada vez menos relevante”. Ele argumenta que o Google, como entidade, nunca teve interesse em fomentar o mercado editorial. Embora iniciativas internas como o Google News Initiative façam um trabalho relevante, quando há um choque de interesses (como entre o buscador que envia tráfego e a IA generativa que o retém), o Google sempre prioriza o que lhe é mais benéfico. Ele cita o caso do AMP como um exemplo desse roteiro.
Escrevemos exatamente sobre essa queda de braços recentemente. Entrevista após entrevista, executivos do Google têm dito que continuam a enviar tráfego e que as metodologias das análises que mostram o contrário são questionáveis.
Jornalismo e IA
Para Ghedin, o bom jornalismo desempenha um papel que nenhuma IA é capaz de replicar: o acesso a fontes e o relato de novos acontecimentos, e as conexões entre eles. Essas são tarefas restritas a seres humanos e muito mais difíceis de fazer do que o “caça-cliques” que compete com as redes sociais.
Nesse sentido, a IA pode, indiretamente, revalorizar esse tipo de jornalismo e acabar de vez com o modelo de “caça-cliques” que domina muitos veículos atualmente. No entanto, Ghedin adverte que esse caminho, se seguido, não será livre de “dor e sofrimento”.
A dependência do Google
A dependência do Google, como a recente queda de tráfego via Discover em diversos veículos, não surpreende Ghedin. Ele afirma que essa situação era previsível, e outras empresas que se diziam “amigas do jornalismo” já haviam feito movimentos similares, como o Facebook/Meta.
Sua postura é “radical”: ele faz um esforço deliberado para não depender e restringir ao máximo qualquer associação com Google, Meta e empresas afins. Embora em algumas situações seja impossível, ele afirma que é possível se esquivar de muita coisa tida como “imprescindível”.
Entrevista Completa
Veja a entrevista completa:
Pergunta 1: Acompanho seu trabalho há alguns anos. Principalmente por polêmicas envolvendo o SEO. Você sempre foi um pouco cético em relação aos algoritmos, não é mesmo?
Não sei se “cético” é a palavra correta para definir minha postura em relação aos algoritmos de recomendação. “Consciente”, “preocupado” ou “atento” são termos melhores. Porque esses algoritmos funcionam em alguma medida, e é aí que mora o perigo, ou os perigos — de nos tornarmos dependentes deles, de nos deixarmos seduzir por eles. Há muitos efeitos colaterais nocivos que não são evidentes e, por isso, costumam ser ignorados.
Por outro lado, sou um tanto cético com o SEO em si. Como não dá para conduzir testes controlados — observar os efeitos do SEO e da ausência de SEO em um mesmo site — e os critérios do algoritmo de indexação do Google são arbitrários e secretos, além de mudarem o tempo todo, é impossível atribuir resultados e uma ou outra ação. Ainda assim, muita gente tem uma fé religiosa no SEO, o que me parece um contrassenso numa área que muito se gaba da objetividade e precisão dos números/métricas. (Vejo esse mesmo fenômeno nos evangelistas de IA, aliás.)
Pergunta 2: Recentemente, você mostrou que bloqueou o acesso do Google ao Manual do Usuário. O que te levou a tomar essa decisão? O que você espera de resultado?
Foi uma reação à quebra do acordo tácito entre Google e sites como o meu Manual do Usuário, em que sites cediam conteúdo ao Google que, em troca, devolvia acessos de pessoas interessadas no que publico.
Com a IA generativa (“AI Overviews”), o Google não está mais enviando pessoas interessadas aos sites. Em vez disso, a IA regurgita o conteúdo absorvido dos sites na própria interface do Google, mantendo as pessoas em seu domínio. O que sobra para os sites? Nada.
Eu já tinha feito um experimento desse tipo em junho de 2024[1]. A queda nos acessos foi visível, mas não sei se, caso mantida, afetaria muito o Manual enquanto negócio. Não ganho um centavo com tráfego bruto, com mais gente acessando o site. Não é por acaso. Foi uma decisão consciente e um dos pilares do Manual desde sempre, porque os incentivos que surgem ao atrelar receita ao tráfego são muito potentes e destrutivos.
Ganho quando alguém topa no meu blog, gosta do lê e passa a acompanhá-lo. Em algum momento essa pessoa percebe o valor entregue e se torna assinante. Ah, detalhe importante: todo o conteúdo é aberto, sem paywall.
No fim, voltando à sua pergunta, acabei desistindo de bloquear o Google, outros buscadores e até empresas de IA porque isso virou uma corrida armamentista e, por mais que me incomode, eu tenho mais o que fazer em vez de brigar com robôs de empresas trilionárias e startups inescrupulosas. (Sem falar que, sozinho, é óbvio que eu vou perder a briga.)
[1] https://manualdousuario.net/tirar-site-google-resultados/
Pergunta 3: Como você avalia, atualmente, o mercado editorial? Recentemente, mostramos muitos publishers apelando para tipos de conteúdos que, no mínimo, vão contra o bom jornalismo.
É resultado daqueles incentivos errados que comentei acima, muitos deles proporcionados pelo próprio Google e toda a indústria de SEO — que, para todos os efeitos práticos, poderia ser chamado apenas de “GO”, ou Google Optimization.
Se a gente aprofundar mais o debate, chegaremos a problemas-raiz que antecedem o Google, como a “pasteurização” promovida pelo digital, onde tudo vira conteúdo e a disputa por atenção faz da qualidade a primeira vítima. Brigar por cliques é uma guerra perdida e o jornalismo fará um bem a si mesmo quanto antes capitular.
Pergunta 4: No seu caso, como você pensa no Manual do Usuário como negócio? Você tem uma lojinha, contribuições etc. Isso é o suficiente para manter o site no ar?
O site em si e todo o aparato necessário para mantê-lo tem um custo baixíssimo, resultado de muita otimização de código e boas escolhas de tecnologias e fornecedores. O maior custo sou eu, ou extrair uma renda que me permita viver com alguma dignidade.
E, nesse sentido, ele está funcionando. A geração de receita vem de duas fontes, as assinaturas e os anunciantes diretos — e um ou outro raro freela que pego por fora, a maioria originada no Manual enquanto uma “vitrine” do que eu sei fazer.
Os produtos com a marca do Manual[2] geram uns trocados, mas existem mais porque são legais e são uma maneira de trabalhar junto e prestigiar profissionais que eu admiro.
O Manual enquanto negócio é uma necessidade. Eu não gosto de pensar em dinheiro, de cobrar de quem quer que seja por qualquer coisa que eu faça, e nem tenho ambições de enriquecer ou de ganhar mais que o suficiente para sustentar meu padrão de vida, que está longe de ser luxuoso. (Tenho ojeriza a ostentação e luxos em geral.) Tento ser muito honesto com quem assina o Manual e com os anunciantes que topam o meu estilo heterodoxo de fazer publicidade, e tenho tido a felicidade de encontrar muitas pessoas que entendem e valorizam essa postura e as reflexões que promovo no blog.
[2] https://manualdousuario.net/loja/
Pergunta 5: Pensando de forma mais ampla, como você imagina que deveria ser a monetização dos portais? E como você acredita que será?
Não sei, de verdade. O Manual funciona porque é um blog sem funcionários, otimizado por e para mim. Se fosse um negócio maior, mais ambicioso, com mais gente participando, acho que teria que adaptar ou mesmo descartar muitas práticas que funcionam hoje.
A única previsão que eu me sinto confortável em fazer é a de que o modelo de publicidade programática, em que os sites ganham por volume (e que nunca funcionou direito), tende a piorar ainda mais com surgimento de IAs de pesquisa, como a Perplexity e os próprios AI Overviews do Google.
Pergunta 6: Como você avalia a participação futura do Google no mercado editorial?
Cada vez menos relevante. O Google enquanto entidade nunca teve o menor interesse em fomentar o mercado editorial, por mais que iniciativas internas menores, como o Google News Initiative, façam um trabalho relevante (e legal!) no meio. Só que quando há um choque de interesses, como caso do buscador que envia as pessoas para fora dos domínios do Google e da IA generativa que as mantêm dentro do Google, o Google sempre privilegia o que lhe é mais benéfico. A gente já viu esse roteiro com o AMP, por exemplo.
Pergunta 7: Qual você acha que será o papel do jornalismo em tempos de IA?
O bom jornalismo desempenha um papel que IA nenhuma ainda é capaz de replicar: o acesso a fontes e o relato de novos acontecimentos (e as conexões entre eles) são tarefas que, hoje, estão restritas a seres humanos. Não por acaso, é um tipo de jornalismo muito mais difícil de fazer que o caça-cliques que compete com as redes sociais e a republicação de comunicados à imprensa.
Nesse sentido, talvez a IA faça o favor (indiretamente) de revalorizar esse tipo de jornalismo e acabe de vez com o caça-cliques que domina os veículos hoje. Pena que esse caminho, se seguido, não será livre de dor e sofrimento.
Pergunta 8: Recentemente, o Google, via Discover, impactou diversos veículos, alguns, muito bons. Como você vê a dependência do Google?
Essa bola estava cantada há muito tempo. Até que demorou para cair, mas não chega a ser uma surpresa porque outras empresas que se diziam amigas do jornalismo já passaram rasteiras similares — caso do Facebook/Meta em inúmeras ocasiões.
Talvez a minha postura seja radical, mas faço um esforço deliberado de não depender e restringir ao máximo qualquer associação com o Google, Meta e empresas afins. Em algumas situações é impossível, mas a real é que dá para se esquivar de muita coisa tida como “imprescindível”.
Publisher do "Não é Agência!" e Especialista de SEO, Willian Porto tem mais de 21 anos de experiência em projetos de aquisição orgânica. Especializado em Portais de Notícias, também participou de projetos em e-commerces, como Americanas, Shoptime, Bosch e Trocafone.
- Willian Portohttps://naoeagencia.com.br/author/naoeagencia/
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